"Ninguém
toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise
de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é
resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como
sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão
«pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A
bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para
nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos
faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no
trabalho, nem no lazer. Por enquanto... Mas a bicicleta tem outros
pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular
engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola
quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer.
A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de
ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas.
Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais
oitos, o «Apelo Angustiante» que há anos, por ocasião das grandes cheias
na região de Lisboa, apareceu nos jornais:
«O meu marido saiu de casa
no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no
Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de
pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento,
tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e
levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão
a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não
tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita,
eu e os meus dois filhos.”
Alexandre O’ Neill